O título Mortuanima já carrega em si um paradoxo filosófico: a morte como força interior, como ânima silente que habita cada gesto, cada escolha. Trata-se de uma metáfora para o confronto com o vazio e a transcendência que este confronto pode provocar. Através de vocais guturais que alternam com limpos como se duas vozes, uma da carne e outra do espírito, dialogassem no mesmo corpo e instrumentais lentos, atmosféricos, dilacerantes, a banda constrói uma liturgia sonora onde a dor não é apenas sintoma, mas processo de revelação. As letras mergulham em estados limítrofes da consciência: perda, finitude, dissolução do eu, e
Mesmo na opção por teclados virtuais em apresentações ao vivo diante da ausência de um tecladista fixo Bleak Transcendence preserva a atmosfera espectral de sua obra. Essa escolha revela um compromisso com a essência, não com a forma: o que importa é manter viva a densidade do ritual sonoro, mesmo que adaptado às contingências materiais. A fidelidade à própria estética mostra uma ética do som, onde o cuidado com o impacto espiritual da música supera os padrões performáticos usuais.
Mortuanima não é um álbum para ser escutado, mas para ser atravessado. Nele, o ouvinte é convidado a deixar-se despir de certezas, a contemplar suas próprias sombras, a escutar o que há de morto — e de eternamente vivo em si. A proposta artística da banda é profundamente filosófica: não há salvação sem confronto, não há transcendência sem travessia pelo abismo. Bleak Transcendence nos lembra que o fim não é silêncio absoluto, mas .uma forma extrema de escuta. No vácuo deixado pelo colapso das ilusões, surge uma nova possibilidade de ser — não mais centrada na identidade, na coesão do eu, mas na abertura à impermanência. Nesse sentido, Mortuanima pode ser lido como um tratado sonoro sobre a decomposição do sujeito moderno, uma desconstrução poética da vontade de sentido, substituída por uma estética da entrega e da suspensão.
Com Mortuanima, o selo Eclipsys Lunarys Productions revela-se como um canal importante para essas vozes dissonantes que encontram no metal extremo uma forma de meditação sonora. A parceria entre banda e selo não é apenas logística; é um pacto estético que sustenta a integridade de uma obra que recusa concessões.
Bleak Transcendence nos oferece, portanto, uma experiência que não se encerra na escuta, mas que continua a reverberar como um lamento antigo gravado nas ossadas da alma nas horas em que o silêncio se impõe. Porque talvez a verdadeira transcendência não esteja em escapar da dor, mas em habitá-la plenamente, como quem aprende a respirar nas ruínas. E se há alguma esperança nesse disco, ela não vem da luz, mas do que aprendemos a ver quando a luz se apaga e quando a luz se apaga, tudo o que resta é o som abafado da terra cobrindo a memória o peso da ausência que nos molda em silêncio. Mortuanima não é só um lamento; é um epitáfio escrito antes da morte, um testamento de tudo aquilo que se perdeu antes mesmo de ser possuído. A cada compasso, a alma se arrasta como um espectro ciente de sua ruína, tropeçando sobre os escombros de um sentido que nunca se formou por completo.
Há um frio que não vem do clima, mas de dentro um frio que desmancha afetos, desbota lembranças, dissolve a carne em melancolia bruta. Neste espaço, esperança é um veneno disfarçado de flor, e a existência, um eco sem origem, vagando entre os corredores ocos da consciência.
A escuta se torna uma espécie de exílio: cada nota nos exila mais de nós mesmos, nos lança a um lugar onde tudo pulsa sem propósito, onde o tempo é uma lenta hemorragia do ser. Bleak Transcendence não grita para ser ouvido; sussurra como um cadáver que se recusa a apodrecer, insistindo em respirar, mesmo quando o ar já virou pó.
Mortuanima é o som da alma que falhou em ser eterna. E ao fim de tudo, só há isso: o coração ainda batendo por inércia, a mente trancada num quarto sem janelas, e a certeza de que o abismo não responde ele apenas observa, calado, enquanto... você continua caindo.
Alexandre Antunes – vocais e guitarra
Você escreve muito bem . Essa linha de escrita faz muita falta nos dias atuais! Parabens
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