segunda-feira, 26 de maio de 2025

Resenha do álbum Despair – Winter Forest (2007)


No submundo do Black Metal brasileiro, onde a dor e o silêncio ganham forma sonora, Despair, da banda gaúcha Winter Forest, surge como um grito sufocado em meio ao vazio. Lançado em 2007, esse álbum é um mergulho profundo no universo do Depressive Suicidal Black Metal (DSBM), onde cada nota parece carregar o peso de uma existência desprovida de sentido.

O projeto, capitaneado por L. Winter (Cassio F. Becker), é a expressão crua e direta de um universo interior devastado, onde a filosofia niilista serve como guia e abismo. Com seis faixas, Despair é ao mesmo tempo um manifesto e um funeral um epitáfio escrito em acordes dissonantes e atmosferas gélidas

Logo na faixa de abertura, “Winter Forest”, somos lançados em uma tempestade de riffs lentos, frios e minimalistas, como se adentrássemos uma floresta morta em pleno rigor do inverno existencial. A produção bruta não soa como limitação, mas como escolha estética enfatizando o distanciamento emocional e a frieza de uma alma em decomposição.

“Tyrant of Nihilism” talvez seja o ponto mais filosófico do álbum. A letra, construída em cima de negações e rupturas, ecoa a ideia de um tirano interno que destrói certezas e consome toda tentativa de sentido. Musicalmente, a faixa avança com uma cadência ritualística, quase hipnótica, como um mantra sombrio que repete a impossibilidade da salvação.

“Reaching the Depths of Death” e “Clouds of Agony” seguem essa trajetória descendente, afundando o ouvinte em uma névoa de dor e introspecção. As guitarras choram lentamente enquanto os vocais rasgados, quase indistinguíveis, funcionam mais como uma textura que como condução lírica. A presença de teclados discretos, mas essenciais, adiciona uma camada etérea e espectral.

A faixa-título, “Despair”, é o ápice do minimalismo. Sua única letra, “Screams”, resume em uma palavra tudo que não pode ser dito. É um momento em que a música transcende a linguagem verbal e se torna puro sentimento ou a ausência total dele. Aqui, o silêncio diz tanto quanto o som.

Fechando o álbum, “Nihil” serve como conclusão temática, reforçando a tese da obra: não há salvação, não há luz, não há nada. A repetição de ideias filosóficas e sonoras não é um erro, mas um espelho do próprio niilismo que o disco encarna: a existência gira em círculos até se desfazer. A faixa não busca resolver, mas afundar ainda mais na constatação de que a busca por sentido é, talvez, a maior das ilusões.

Despair não é apenas um álbum de Black Metal é uma experiência conceitual. A escolha de letras
enxutas, melodias dilaceradas e timbres crus revela a intenção de transformar música em ritual. Cada faixa é como uma estação dentro de uma jornada interna, em que o ouvinte é forçado a confrontar o lado mais sombrio da existência e da própria psique.

É possível traçar paralelos com bandas internacionais como Xasthur, Nocturnal Depression ou até mesmo os primeiros trabalhos de Burzum, mas Winter Forest entrega algo profundamente pessoal enraizado não apenas na dor existencial universal, mas também em um sentimento de isolamento tipicamente sul-americano, onde a marginalização do gênero é tão intensa quanto o conteúdo que ele carrega.

A beleza de Despair está justamente na sua recusa em oferecer catarse. Não há redenção, nem redenção estética. Ao contrário, tudo é entrega ao caos interno um chamado para aceitar o fim de todas as ilusões, e com isso, talvez encontrar uma forma de silêncio mais honesta que qualquer promessa de consolo. Esse silêncio opressor, absoluto, nu, não é ausência de expressão, mas o ponto final de uma jornada onde o som já não serve mais como veículo de comunicação, e sim como eco de algo que já morreu.

Essa proposta faz de Despair um álbum desafiador. Ele exige escuta atenta, não no sentido técnico, mas emocional. Não é música para consumo rápido ou distração; é música para momentos de confrontação. O disco rejeita ornamentos, rejeita virtuosismo, rejeita qualquer noção de esperança. Cada faixa soa como se estivesse presa entre a dor e a ausência total de emoção, um limbo onde o ouvinte é forçado a apenas ser, sem máscaras ou fantasias.

No panorama do Black Metal nacional, Winter Forest se destaca por oferecer uma visão estética e filosófica coesa, sombria e radicalmente honesta. Despair não tenta agradar e é justamente nisso que reside sua força. Ele não convida o ouvinte, ele o arrasta. É uma obra feita não para todos, mas para aqueles que, em algum momento, reconheceram no abismo interno não um inimigo, mas um espelho.

E é nesse espelho, trincado, que nos vemos, ainda que fragmentados. Porque Despair não é só um disco é um testamento. Um testemunho do que acontece quando não há mais para onde fugir. Quando até o grito se cala. Quando o frio não é apenas climático, mas ontológico. E então resta apenas a floresta, o vazio, o fim. ou talvez o eterno retorno do mesmo, onde o fim não é um encerramento, mas um ciclo  uma repetição incessante do vazio. Em Despair, o tempo não avança: ele se arrasta, circular, como se cada riff fosse um loop de sofrimento estagnado. Não há progresso, apenas insistência. E essa insistência é o que o torna brutalmente humano.

Esse álbum nos lembra que o desespero não é um momento isolado, mas uma condição possível  e muitas vezes permanente da existência. Não há catarse em Despair, porque não há superação. O álbum se recusa a fechar suas feridas, preferindo exibi-las como um corpo que já não sangra, mas pulsa em silêncio. É uma obra sobre desistir não da vida em si, mas das ficções que a sustentam.

A escolha de manter as letras quase inaudíveis, afundadas na mixagem, também faz parte da estética de negação. As palavras não importam tanto quanto a sensação que elas evocam. É como tentar conversar durante uma tempestade: tudo o que se ouve é o vento, e o que se sente é o frio. O álbum é esse vento. É esse frio.

No cenário underground brasileiro, Despair representa um ponto de resistência contra o excesso de técnica, brilho ou até teatralidade que muitas vezes permeia o metal extremo. Winter Forest faz o caminho oposto: caminha rumo à essência, à matéria-prima do sofrimento, à natureza desolada do espírito. Não há nada aqui que não seja verdadeiro em sua dor. Não há concessões.

O Brasil, com sua tradição de extremos sociais, emocionais, geográficos  é o terreno perfeito para o surgimento de uma obra como essa. Despair carrega em si o eco das florestas vazias do sul, das cidades esquecidas pelo tempo, da interiorização de uma tristeza que não grita, mas consome. E talvez seja nesse ponto que o álbum se conecte com quem escuta: ao expor a impossibilidade de redenção, ele também liberta. Pois quando tudo já morreu dentro de nós, resta apenas a aceitação.

E é aí que Despair se torna mais que um disco. Ele se torna um companheiro silencioso para aqueles que caminham entre ruínas. Não oferece mão, nem palavra de apoio. Apenas caminha ao lado. Em silêncio. No escuro esse caminhar silencioso seja o gesto mais verdadeiro de todos. Porque Despair não tenta curar, não tenta convencer, não tenta mentir. Ele apenas é. Cru, honesto, brutal. Um espelho de almas partidas, de mentes que já não esperam mais o dia seguinte, mas ainda assim respiram  mesmo que sem sentido.

Winter Forest, com esse álbum, oferece um refúgio sombrio para os que buscam algo além da estética: uma vivência, uma comunhão no sofrimento, uma trilha sonora para noites em que a existência pesa mais do que o corpo pode suportar. Despair é a floresta onde não há trilha, só frio, ecos e ausência.

E é nesse espaço desolado que o disco encontra sua grandeza. Porque ao se negar a ser acessível, ao se recusar a entreter, ele atinge o âmago da arte verdadeira: aquela que não serve, mas se impõe. Que não conforta, mas revela. Que não se explica, mas permanece.

Despair não termina ele continua dentro de quem escuta. Como uma brasa oculta sob a neve. Como o último som antes do silêncio completo. Como um último olhar para dentro de si mesmo, e a certeza de que... não há mais nada. E, talvez, exatamente por isso, tudo.

 



 


 

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