Logo na primeira faixa, Na Praia da Espera, o ouvinte é imediatamente conduzido para um cenário onde as camadas de guitarras etéreas se entrelaçam com batidas que evocam tanto força quanto contemplação. A escolha dos timbres, a cadência dos riffs e a utilização de vozes abafadas criam uma atmosfera onde parece possível ouvir o vento cortando a pele e o som das ondas se misturando com distorções. A construção da música não é linear, mas cíclica, alternando momentos de peso com passagens mais etéreas, quase meditativas.
Costa Azul, a segunda faixa, aprofunda essa jornada sensorial, utilizando acordes que soam como
verdadeiros chamados para a vastidão. Aqui, há uma clara influência do blackgaze, especialmente no uso das guitarras em muro de som, que permanecem flutuando durante quase toda a composição. A bateria, embora precisa, não busca protagonismo; ela se apresenta como uma âncora rítmica, permitindo que as melodias se desenvolvam com fluidez. É possível perceber como Laurent consegue transformar sentimentos em paisagens sonoras, algo que poucos artistas dentro do metal atmosférico conseguem realizar com tanta coesão.
A faixa-título, Na Santa Paz da Aurora, talvez seja o ápice do disco. Desde os primeiros segundos, uma linha de guitarra suave estabelece um clima quase cerimonial. As camadas de som vão se sobrepondo de maneira orgânica, e a voz, muitas vezes utilizada mais como instrumento do que como portadora de palavras, surge como um sussurro distante, quase um eco vindo do horizonte. A música parece descrever não apenas um amanhecer literal, mas também um amanhecer simbólico, onde se percebe a chegada de uma nova fase, um novo estado de espírito. É um convite ao ouvinte para permanecer, ouvir e se deixar levar.
Por fim, Janaína encerra o álbum com uma abordagem que mescla melancolia e reverência. O título, uma referência direta à divindade das águas no sincretismo afro-brasileiro, traz consigo uma carga simbólica que se reflete diretamente na construção musical. Diferente das faixas anteriores, há aqui uma presença mais marcante de linhas melódicas limpas, que soam quase como uma despedida. É como se a embarcação, após atravessar mares revoltos e amanheceres dourados, finalmente ancorasse em um porto seguro, onde o silêncio e a brisa salgada tomam conta do ambiente.
O que torna este álbum particularmente notável é a sua capacidade de transcender os limites tradicionais do metal atmosférico. Laurent não se prende às fórmulas mais convencionais do gênero; ao contrário, ele expande as fronteiras, incorporando elementos que remetem tanto ao post-rock quanto a ambiências típicas de música eletrônica ambiental. Há uma preocupação evidente com os detalhes: cada reverberação, cada silêncio entre notas, cada mudança de dinâmica parece pensada para provocar sensações específicas.
Além da parte sonora, a escolha da temática é profundamente poética. Inspirado pelas viagens e relatos de Amyr Klink, o álbum funciona quase como um diário de bordo, onde cada faixa representa uma etapa da travessia. Mas não se trata apenas de uma travessia física. As letras, embora muitas vezes soterradas pelas camadas instrumentais, revelam passagens que falam de entrega, de coragem diante do desconhecido, de se lançar ao mar mesmo quando o destino ainda é incerto.
A produção do álbum é outro ponto que merece destaque. Apesar de ser um projeto independente, a qualidade sonora é extremamente bem cuidada. As guitarras soam cristalinas quando necessário e densas quando a proposta exige. A bateria, mixada de forma a nunca sobrepor os elementos melódicos, mantém um equilíbrio perfeito, reforçando os climas sem nunca roubar a cena. O baixo, embora mais discreto, cumpre um papel fundamental na sustentação harmônica e na criação de texturas mais profundas. A participação de Falcão nas guitarras e vocais adiciona uma camada extra de riqueza, trazendo variações sutis que ampliam o leque de emoções presentes no trabalho.
Ao longo dos seus 28 minutos, Na Santa Paz da Aurora se estabelece não apenas como um álbum, mas como uma experiência sensorial e quase cinematográfica. Cada faixa funciona como um capítulo de uma história maior, onde o ouvinte não é apenas espectador, mas também navegante dessa travessia. A escolha de finalizar o álbum com Janaína não parece aleatória; ela fecha um ciclo, remetendo tanto à origem quanto ao destino, ao retorno para casa após uma longa jornada de descobertas e superações. O silêncio que surge após os últimos acordes é carregado de significado, como se o próprio mar, após horas de conversa em ondas e ventos, simplesmente decidisse se calar, permitindo que apenas a memória do que foi vivido ecoe no espaço vazio.
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