quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Amaro Freitas - O Piano Como Rito, Raiz e Revolução

 


A trajetória de Amaro Freitas é um mergulho cada vez mais profundo nas camadas da identidade brasileira e afro-diaspórica por meio do piano. Desde o primeiro registro, Sangue Negro (2016), já era possível perceber que ali nascia um artista movido por inquietação e coragem estética. O disco impressionava não apenas pela execução técnica, mas pelo uso inusitado da linguagem jazzística para traduzir os ritmos do Recife como o frevo, o maracatu e o coco em algo instintivamente moderno e ancestral ao mesmo tempo.

Com Rasif (2018), Amaro atravessou a ponte do Atlântico e se fez notar com ainda mais força na cena europeia. O piano virou corpo-percussão, canal de comunicação entre o nordeste e o mundo, e o trio  com Jean Elton e Hugo Medeiros encontrou um equilíbrio raro entre improvisação livre e organização rítmica. O disco carrega uma pulsação espiritual que, mesmo sem palavras, conta histórias sobre pertencimento e resistência. Amaro não toca apenas teclas; ele toca memórias enraizadas em tambores e silêncios coletivos.

Já em Sankofa (2021), o pianista crava com mais firmeza seu nome entre os grandes. O álbum soa como uma busca consciente por raízes. O símbolo adinkra que dá nome à obra representa a necessidade de revisitar o passado para caminhar para frente e é exatamente isso que a música de Amaro faz: ela escava, resgata, reinventa. As composições têm estruturas menos convencionais, mais contemplativas, com momentos de pura fratura harmônica e instantes de meditação rítmica. Sankofa é um ritual, não apenas um álbum.

Mas é em Y’Y (2024) que ele parece alcançar um novo plano de linguagem sonora. Gravado após
experiências intensas na floresta amazônica e contato com povos originários como os Sateré Mawé, esse trabalho abandona estruturas formais para criar paisagens sensoriais em que o piano se dissolve em folhas, vapores e espíritos. Instrumentos indígenas, manipulações acústicas e silêncios premeditados formam um disco que soa mais como um rito do que como uma coleção de faixas. Há um caráter cósmico, quase místico em faixas como Mapinguari ou Encantados, que parecem convocar presenças invisíveis, tornando o ato de ouvir um tipo de transe silencioso. Em Y’Y, Amaro Freitas abandona qualquer desejo de agradar o ouvinte para, em vez disso, desafiar sua escuta. O piano vira rio, sussurro, tempestade, abrindo espaço para algo muito maior do que técnica: ancestralidade. É como se cada nota carregasse um chamado não para o entretenimento, mas para o despertar.

Essa profundidade musical só é compreensível à luz de sua história de vida. Nascido em 1991, no bairro de Afogados, periferia de Recife, Amaro cresceu entre os bancos da igreja evangélica e a necessidade urgente de sobreviver. Começou a tocar teclado aos 12 anos, em cultos, onde aprendeu a lidar com a improvisação e a emoção. Seu talento logo chamou atenção, mas o caminho nunca foi fácil: chegou a estudar no Conservatório Pernambucano de Música, mas precisou interromper o curso porque não tinha dinheiro nem para a passagem.

Entre turnos exaustivos em call centers e noites tocando em bares do Recife Antigo, Amaro formou seu primeiro trio. Ele não teve mestres formais de jazz: aprendeu escutando CDs usados e vídeos, estudando as obras de Chick Corea, Thelonious Monk, Herbie Hancock, mas também Hermeto Pascoal, Moacir Santos e Jackson do Pandeiro. A escassez se converteu em linguagem. A ausência de escola virou escola própria.

Amaro nunca quis soar como os outros. Desde cedo entendeu que seu lugar no jazz não seria como reprodutor de fórmulas, mas como inventor de uma ponte entre o Recife profundo, negro, ritmado, e o jazz universal. Essa postura o levou a palcos internacionais como Montreux, Ronnie Scott’s, Blue Note Tokyo sem nunca abandonar sua radicalidade estética e política. Seus discos não são só álbuns: são declarações. E sua música não é apenas som, mas uma invocação daquilo que foi calado por séculos: vozes indígenas, pretas, periféricas, que não pedem permissão para existir.

Hoje, Amaro Freitas é mais do que um pianista. É um contador de histórias sem palavras. Um arqueólogo da alma. Um dos nomes mais importantes da música brasileira contemporânea. E mesmo com o mundo finalmente ouvindo o que ele tem a dizer o caminho de volta às origens, às margens dos rios, aos tambores que ecoam na noite de Pernambuco, aos sonhos de menino que apertava teclas com dedos suados de fé ainda pulsa como bússola. Porque para Amaro, tocar é mais do que arte. É sobrevivência. É oferenda. E o que virá depois de Y’Y, talvez nem precise mais de piano. Talvez venha do silêncio entre as notas, da pausa que precede o sopro, do ranger das folhas sob os pés de alguém que atravessa a floresta com os ouvidos mais atentos do que a boca. Amaro parece estar cada vez menos interessado na forma e mais ligado à essência o som como ritual, como memória viva, como território. Se Sangue Negro era a afirmação de um talento técnico e visceral, Y’Y é quase um abandono da técnica em favor da escuta do invisível.

E isso não é pouca coisa para alguém que cresceu tendo que gritar para ser ouvido. O menino de Afogados, que pegava ônibus lotado com um teclado no colo, que via no jazz algo tão distante quanto o próprio conforto, hoje senta-se diante do piano com a autoridade de quem traduziu as batidas do coração nordestino em linguagem cósmica. Seu corpo se move como se incorporasse cada ritmo ancestral que pulsa no chão que pisa. Ele aprendeu a tocar ouvindo os sons do bairro, do mercado, do culto, da rua e agora devolve tudo isso transformado em arte que ressoa longe demais para ser medida por palcos ou prêmios.

Ainda assim, mesmo nas maiores salas da Europa ou nos festivais de prestígio, há algo em Amaro que parece não se render ao glamour do reconhecimento. Ele carrega no gesto a humildade de quem sabe que a música não lhe pertence que ela é algo que passa por ele, como vento, como água, como sopro de orixá. A cada novo trabalho, sua busca se torna mais espiritual, mais orgânica, mais arriscada. Não se trata mais de impressionar, mas de provocar. De deslocar. De curar.

E quando ele toca, há um intervalo entre as notas que parece abrir portais. Um espaço em que o tempo se dobra, e o passado, o presente e o que ainda virá convivem em harmonia tensa. É ali que mora sua revolução. Amaro não quer apenas nos mostrar que o Brasil é maior do que o que se escuta nas rádios ele quer nos lembrar que há um Brasil escondido dentro de cada um, feito de terra molhada, lamento antigo e esperança. Um Brasil que dança sem música e canta sem voz. Um Brasil que sobrevive mesmo quando tudo parece querer silenciá-lo. É esse Brasil que pulsa nas teclas de Amaro não o país dos discursos, mas o das encruzilhadas, dos terreiros, das ladeiras de Olinda ao som do agogô. É o Brasil que sente, que resiste, que inventa caminhos onde só havia escombros. O som de Amaro Freitas não é apenas nordestino, negro, indígena ou brasileiro. É o som do que foi recusado pelo sistema, mas se impôs pela beleza.

E isso se manifesta não só em sua discografia, mas em sua postura como artista. Ele recusa o lugar de “virtuose domesticado” que o mercado musical tantas vezes quer impor a músicos pretos. Prefere trilhar rotas laterais, mesmo que mais difíceis, onde possa manter controle estético, narrativo e político sobre sua obra. A escolha por selos independentes, os longos processos de pesquisa, a colaboração com artistas de diversas partes do mundo tudo isso faz parte de uma ética que vai além do palco. Amaro quer transformar escuta em consciência, e consciência em movimento.

Em seus shows, há algo quase litúrgico. Não é só performance é evocação. Ele chega ao piano em silêncio, se senta com reverência, fecha os olhos como quem pede licença. E então começa: uma melodia quebrada, um acorde torto, uma explosão súbita. O público, desconcertado, cala. Amaro, em transe, faz do piano tambor, lamento, maré. E ali, naquele instante, algo acontece. Não se sabe exatamente o quê. Mas é como se a sala se tornasse templo. Como se o som não viesse dele, mas de um lugar mais fundo talvez um riacho da infância, talvez uma memória coletiva enterrada sob asfalto, talvez um segredo que só o silêncio depois da última nota pode revelar. Porque em Amaro, a música não termina ela paira. Ela volta. Ela se esconde atrás da próxima curva da estrada. E mesmo que se tente explicar ou escrever sobre ela, falta sempre algo. Um detalhe. Um grito. Um sussurro. Algo que ainda pulsa, e que insiste em permanecer não dito. Como se a própria incompletude fosse parte da linguagem de Amaro Freitas. Ele parece saber, intuitivamente, que há verdades que não cabem na partitura, que a música, quando é realmente viva, nunca se resolve ela se fragmenta, se desloca, se espalha. E é nesse movimento constante que ele encontra sua liberdade.

Essa liberdade, no entanto, não veio sem feridas. Amaro carrega no corpo e na memória as cicatrizes de um país que ainda reluta em reconhecer o valor da arte negra, periférica, espiritual. Quantas portas se fecharam antes da primeira turnê internacional? Quantas salas negaram espaço para o menino de teclado no colo? Quantas vezes o talento foi confundido com insolência, e a ousadia com desvio? Ele não esquece. E é por isso que cada disco é também um manifesto. Uma forma de devolver à música o que ela lhe deu dignidade, voz, futuro.

Mas não é só a dor que se escuta em seus álbuns. Há também festa, riso, infância, sol. Há os domingos de feijoada com som alto, os batuques de rua, o cheiro de chuva em telha quente. Há uma alegria que não ignora a violência, mas que sobrevive a ela. E isso talvez seja o mais revolucionário em sua obra: a capacidade de fazer beleza mesmo quando o mundo parece ruir. De tocar como quem reza. De compor como quem planta. De tocar o piano como se fosse um barco ancestral navegando por rios esquecidos, atravessando noites sem estrela em busca de um amanhã que ainda não tem nome. E esse barco segue, sem pressa, conduzido por mãos firmes que sabem que a jornada importa tanto quanto o destino. Mãos que não têm medo do abismo, porque já tocaram o fundo. Mãos que improvisam não por acaso, mas por sabedoria. Porque sabem que o improviso é também um ato de fé e a fé, para quem veio de onde Amaro veio, não é dogma, é sobrevivência. É pulso. É som. É silêncio que escuta antes de falar, que sente antes de saber, que resiste mesmo quando ninguém mais ouve. Porque Amaro Freitas não toca para caber no mundo ele toca para recriá-lo. A cada nota, ele abre frestas por onde o invisível escapa. A cada pausa, ele nos convida a voltar para dentro. Sua música é raiz que se move, é vento que dança, é tambor que sonha.

E talvez esse seja o segredo que ele carrega: Amaro não quer ser lido como apenas um pianista. Ele é um canal. Um tradutor do indizível. Um homem que faz do som um território sagrado, onde se pode chorar sem vergonha, dançar sem coreografia, e lembrar que existir como ele existe é já por si uma forma de revolução.

O que há em sua obra não se aprende em conservatório, nem se ensina em método. É chama que vem de dentro, fogo que arde quieto, mas que queima tudo o que é raso. Amaro Freitas não está apenas construindo uma discografia está plantando um legado. Um som que, quando tudo mais se calar, ainda será ouvido pelas pedras, pelos rios, pelas raízes. Porque quem ouve de verdade o que ele faz, jamais volta o mesmo. E é por isso que sua música... permanece.


BANDCAMP



 




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