Com Rasif (2018), Amaro atravessou a ponte do
Atlântico e se fez notar com ainda mais força na cena europeia. O piano virou
corpo-percussão, canal de comunicação entre o nordeste e o mundo, e o trio com Jean Elton e Hugo Medeiros encontrou um
equilíbrio raro entre improvisação livre e organização rítmica. O disco carrega
uma pulsação espiritual que, mesmo sem palavras, conta histórias sobre
pertencimento e resistência. Amaro não toca apenas teclas; ele toca memórias
enraizadas em tambores e silêncios coletivos.
Já em Sankofa (2021), o pianista crava com mais
firmeza seu nome entre os grandes. O álbum soa como uma busca consciente por
raízes. O símbolo adinkra que dá nome à obra representa a necessidade de
revisitar o passado para caminhar para frente e é exatamente isso que a música
de Amaro faz: ela escava, resgata, reinventa. As composições têm estruturas
menos convencionais, mais contemplativas, com momentos de pura fratura
harmônica e instantes de meditação rítmica. Sankofa é um ritual, não apenas um
álbum.
Essa profundidade musical só é compreensível à luz de sua
história de vida. Nascido em 1991, no bairro de Afogados, periferia de Recife,
Amaro cresceu entre os bancos da igreja evangélica e a necessidade urgente de
sobreviver. Começou a tocar teclado aos 12 anos, em cultos, onde aprendeu a
lidar com a improvisação e a emoção. Seu talento logo chamou atenção, mas o
caminho nunca foi fácil: chegou a estudar no Conservatório Pernambucano de
Música, mas precisou interromper o curso porque não tinha dinheiro nem para a
passagem.
Entre turnos exaustivos em call centers e noites tocando em
bares do Recife Antigo, Amaro formou seu primeiro trio. Ele não teve mestres
formais de jazz: aprendeu escutando CDs usados e vídeos, estudando as obras de
Chick Corea, Thelonious Monk, Herbie Hancock, mas também Hermeto Pascoal,
Moacir Santos e Jackson do Pandeiro. A escassez se converteu em linguagem. A
ausência de escola virou escola própria.
E isso não é pouca coisa para alguém que cresceu tendo que
gritar para ser ouvido. O menino de Afogados, que pegava ônibus lotado com um
teclado no colo, que via no jazz algo tão distante quanto o próprio conforto,
hoje senta-se diante do piano com a autoridade de quem traduziu as batidas do
coração nordestino em linguagem cósmica. Seu corpo se move como se incorporasse
cada ritmo ancestral que pulsa no chão que pisa. Ele aprendeu a tocar ouvindo
os sons do bairro, do mercado, do culto, da rua e agora devolve tudo isso
transformado em arte que ressoa longe demais para ser medida por palcos ou
prêmios.
Ainda assim, mesmo nas maiores salas da Europa ou nos
festivais de prestígio, há algo em Amaro que parece não se render ao glamour do
reconhecimento. Ele carrega no gesto a humildade de quem sabe que a música não
lhe pertence que ela é algo que passa por ele, como vento, como água, como
sopro de orixá. A cada novo trabalho, sua busca se torna mais espiritual, mais
orgânica, mais arriscada. Não se trata mais de impressionar, mas de provocar.
De deslocar. De curar.
E isso se manifesta não só em sua discografia, mas em sua
postura como artista. Ele recusa o lugar de “virtuose domesticado” que o
mercado musical tantas vezes quer impor a músicos pretos. Prefere trilhar rotas
laterais, mesmo que mais difíceis, onde possa manter controle estético,
narrativo e político sobre sua obra. A escolha por selos independentes, os
longos processos de pesquisa, a colaboração com artistas de diversas partes do
mundo tudo isso faz parte de uma ética que vai além do palco. Amaro quer transformar
escuta em consciência, e consciência em movimento.
Essa liberdade, no entanto, não veio sem feridas. Amaro
carrega no corpo e na memória as cicatrizes de um país que ainda reluta em
reconhecer o valor da arte negra, periférica, espiritual. Quantas portas se
fecharam antes da primeira turnê internacional? Quantas salas negaram espaço
para o menino de teclado no colo? Quantas vezes o talento foi confundido com
insolência, e a ousadia com desvio? Ele não esquece. E é por isso que cada
disco é também um manifesto. Uma forma de devolver à música o que ela lhe deu
dignidade, voz, futuro.
Mas não é só a dor que se escuta em seus álbuns. Há também
festa, riso, infância, sol. Há os domingos de feijoada com som alto, os
batuques de rua, o cheiro de chuva em telha quente. Há uma alegria que não
ignora a violência, mas que sobrevive a ela. E isso talvez seja o mais
revolucionário em sua obra: a capacidade de fazer beleza mesmo quando o mundo
parece ruir. De tocar como quem reza. De compor como quem planta. De tocar o
piano como se fosse um barco ancestral navegando por rios esquecidos,
atravessando noites sem estrela em busca de um amanhã que ainda não tem nome. E
esse barco segue, sem pressa, conduzido por mãos firmes que sabem que a jornada
importa tanto quanto o destino. Mãos que não têm medo do abismo, porque já
tocaram o fundo. Mãos que improvisam não por acaso, mas por sabedoria. Porque
sabem que o improviso é também um ato de fé e a fé, para quem veio de onde
Amaro veio, não é dogma, é sobrevivência. É pulso. É som. É silêncio que escuta
antes de falar, que sente antes de saber, que resiste mesmo quando ninguém mais
ouve. Porque Amaro Freitas não toca para caber no mundo ele toca para
recriá-lo. A cada nota, ele abre frestas por onde o invisível escapa. A cada
pausa, ele nos convida a voltar para dentro. Sua música é raiz que se move, é
vento que dança, é tambor que sonha.
E talvez esse seja o segredo que ele carrega: Amaro não quer
ser lido como apenas um pianista. Ele é um canal. Um tradutor do indizível. Um
homem que faz do som um território sagrado, onde se pode chorar sem vergonha,
dançar sem coreografia, e lembrar que existir como ele existe é já por si uma
forma de revolução.
O que há em sua obra não se aprende em conservatório, nem se
ensina em método. É chama que vem de dentro, fogo que arde quieto, mas que
queima tudo o que é raso. Amaro Freitas não está apenas construindo uma
discografia está plantando um legado. Um som que, quando tudo mais se calar,
ainda será ouvido pelas pedras, pelos rios, pelas raízes. Porque quem ouve de
verdade o que ele faz, jamais volta o mesmo. E é por isso que sua música...
permanece.
Nenhum comentário:
Postar um comentário